Encerrou-se no passado Domingo, dia 17 de Abril, o ciclo comemorativo do centenário da abertura do Museu de Castelo Branco. Não compete a este artigo (nem é propósito meu) fazer o balanço do que foi o centenário que terminou: o que se fez ou o que nele ficou por fazer - e por dizer. Pelo contrário, como o título do artigo já deixa antever, pretendo apresentar aqui, em breves e desajeitadas pinceladas, um retrato somente esboçado do nascimento do museu: o processo, as decisões e algumas notícias da sua inauguração. Este retrato (incompleto tanto no que respeita à profusão de notícias do seu "nascimento" quanto à apresentação de aspectos decisivos da sua conturbada vida inicial) provém de uma selecção, mais ou menos aleatória, da vasta colecção de notas que venho coligindo há vários anos e cuja finalidade é, justamente, elaborar (um dia) a "biografia" de uma das instituições mais importantes da divulgação e preservação da cultura - passe a vastidão e ambiguidade do conceito - de Castelo Branco.
Foi em 1908 que a ideia de criar um museu municipal, em Castelo Branco, se concretizou no espírito de Francisco Tavares Proença Junior. Com uma colecção etnográfica (no sentido que a expressão tinha em fins do séc. XIX e primórdios do XX) de alguma expressão - cerca de 3.000 peças - tanto em diversidade como em qualidade, julgou que seria mais proveitoso expô-la ao público do que guardá-la e estudá-la avaramente para si. Pois a ideia principal que norteava a criação do museu radicava na concepção de instrução, de conhecimento - não de um conhecimento etéreo e descarnado da própria realidade ou da vivência concreta do ser humano, mas de um conhecimento do passado que fortalecesse a consciência de si, de cada um de nós, no seio mais vasto da pátria. Segundo as palavras do seu mentor: Quanto mais intenso for o conhecimento da historia tanto mais firme será o sentimento da nacionalidade.1 Assim, no dia 26 de Março de 1908, Tavares Proença Júnior envia um ofício à Câmara Municipal propondo a criação do Museu: De Francisco Tavares de Proença Junior, em data de 26 de Março ultimo, ponderando as vantagens da fundação dum museu municipal n'esta cidade, indicando como local proprio para elle ser estabelecido a Capela do antigo convento de santo antónio, offerecendo para o effeito parte da sua importante collecção archeologica e promptificando-se a dirigir a installação do museu e promover o seu desenvolvimento continuando a realisar explorações e a recolher todos os objectos dignos de ser estudados e salvos da destruição.2 Em sessão camarária do dia 8 de Abril, o elenco - presidido pelo dr. Manuel Pires Bento - aceitou o alvitre e, de imediato, pediu ao Governo a cedência da Capela do Convento de S. António para o fim proposto (uma vez que ela pertencia ao Ministério da Guerra e fazia parte do Hospital Militar). Mais ainda, em plena sessão, adiantou várias deliberações (que se provou terem sido fundamentais) no que toca à futura fundação e orientação interna do próprio museu: a Câmara não só aceitava a oferta de parte do espólio de Tavares Proença Junior, mas também sugeria que o distincto archeologo fosse o seu director e conservador. De facto, assim aconteceu.
As condições seriam basicamente estas: Tavares Proença Junior oferecia parte da sua colecção e depositava lá a outra parte, organiza um regulamento interno, cataloga e expõe as peças da maneira que lhe parece mais correcta e a Câmara Municipal arcava com as despesas de adaptação do referido edifício e com a manutenção dele (a única despesa fixa contraía-se com a contratação de um contínuo ou porteiro para abrir o "estabelecimento científico" aos Domingos). Isto não impedia que continuasse a fazer prospecções arqueológicas e a estudar os materiais que encontrasse, fazendo publicar os resultados do seu estudo em revistas da especialidade, tanto portuguesas como estrangeiras. A sugestão da criação do Museu foi acolhida com um grande entusiasmo pelas autoridades locais - aliás, imitando outras Câmaras Municipais pelo país fora. Ao ponto de a notícia se ter propalado rapidamente e Félix Alves Pereira publicar um artigo de divulgação na melhor revista dedicada a antiguidades (arqueológicas e outras) então publicada em Portugal. Aí se diz: Regozijemo-nos em familia com uma noticia que nos chega da capital da Beira Baixa. O Sr. Francisco Tavares de Proença Junior, archeologo apaixonado e generoso, possuia naquella cidade uma collecção archeologica, ja valiosa pelo numero (cêrca de 3:000 objectos) e pela qualidade. Bastariam para lhe dar importancia as duas pedras inscritas, cujos desenhos foram apresentados ao Congresso Prehistorico de Périgueux. Este nucleo de archeologia regional acaba de ser offerecido pelo seu desinteressado proprietario ao municipio de Castello Branco... A Camara, com criterio verdadeiramente esclarecido e elevado, acolheu grata a referida proposta...3
Aceite a proposta e as condições nela inseridas, as entidades competentes lançaram mãos à obra. A despeito de alguma lentidão das obras de adaptação, das hesitações e ziguezagues que envolveram as primeiras decisões de um projecto de cariz filantrópico à nascença - o museu franqueava as suas portas ao público dois anos depois, precisamente em um Domingo, dia 17 de Abril de 1910. E durante muito tempo a sua abertura resumia-se a três ou quatro horas ao Domingo.
Como se sabe, Francisco Tavares de Proença Junior não admitiu que a inauguração chamasse sobre si a atenção: nem autoridades a descerrar lápides, nem charanga musical, nem foguetório ou palmas do povoléu. A população foi avisada pela fixação de editais nos sítios do costume. O acto pedia apenas sobriedade, por respeito a e analogia com as matérias expostas. Um cronista da época registou o carácter inusitado da efeméride do seguinte modo. Foi inaugurado no domingo o museu municipal. Visitámol-o á tarde, sendo gentilmente recebidos pelo seu organisador sr. Proença Junior. Somos profanos em assumptos de archeologia. Não conhecemos o valor das coisas ali expostas, mas algumas parecem-nos interesantes. Verdade seja que da nossa força scientifica são quasi todos os habitantes da terra albicastrense, embora muitos finjam saber da poda - p'ra se darem ares de pessoas ilustradas...4
Mas foi da pena do cronista da Gazeta da Beira (provavelmente a do mestre António Rodrigues Cardoso) que nos chegou a crónica mais longa, rica e minuciosa; também aqui se sublinha a simplicidade do acto público: tudo se fez modestamente, sem dispendio de rhetorica, sem discursos nem trombetas.5 Ele não se esqueceu de felicitar a Câmara Municipal pela obra realizada, contudo, os maiores louvores dedica-os ao fundador: A maior honra, porém, a maior gloria e os maiores louvores são para o benemerito que prodigamente pôs à disposição do publico o fruto do seu trabalho e estudo.6 Leite de Vasconcellos reproduziu esta crónica, na íntegra, nas páginas da revista que dirigia.
Foi breve a passagem de F. Tavares de Proença Júnior pela direcção da instituição que fundara. A chegada do regime republicano obrigou-o a exilar-se e, desde então, não dedicaria mais o seu tempo a escavações nem ao estudo atento de outras antiguidades. O museu ficava, assim, órfão de "pai". A Câmara republicana apressou-se a nomear um vereador - João do Nascimento Costa - para cuidar dos negócios básicos do museu e o dr. M. Paiva Pessoa assumia, ao lado do vereador, o cargo de conservador. Isto porque, de cada vez que se dá uma mudança brusca de regime político, os vencedores costumam considerar-se arautos da verdade (e, mais grave, impolutos) nas suas acções. E, claro, nestas ocasiões o mal penetra os mais recônditos meandros da realidade. O Museu Municipal Archeologico (como aparece referido em muita documentação) também sofreu a visita dos novos caciques. Imediatamente após o 5 de Outubro, a sua reorganização ficou a cargo do dr. Paiva Pessoa, depois que a canalha destroçara por malvadez e rancores pessoaes7 o que tão zelosamente F. Tavares de Proença Junior concebera, ofertara e organizara. Curiosamente, uma parte interessante da composição do retrato dos "verdes anos" do Museu persiste, por estudar, nas cartas familiares. Mas "os maus fados do berço" (como diz José Lopes Dias) mal tinham começado.8 Parecia que havia uma conjugação perfeita entre o desvario geral do país e o Museu Municipal. De modo que em Novembro de 1912 já se mudava para a antiga Escola do Conde Ferreira, no recinto da alcáçova; em 1916 acomodam-se as colecções em dependências da Câmara Municipal (hoje Conservatório Regional); e não ficou por aqui: durante largos períodos mantinha-se fechado. Só em 1929, por altura do IV Congresso Beirão, é inaugurado no antigo edifício dos Correios e Telégrafos (edifício recentemente demolido, onde hoje se encontra o Centro de Interpretação do Tejo Internacional), desta vez deu-se atenção a critérios museológicos da época (cenografia, identificação das peças, etc.), criou-se um quadro de pessoal e nomeou-se uma comissão de supervisão na qual pontificava Elias Garcia (além de Paiva Pessoa e Crispiano da Fonseca), que seria o futuro director. (Nesta data começa uma nova etapa do Museu, da qual não fazemos aqui qualquer menção.) Ora, durante esta itinerância peregrina, perderam-se peças (houve mesmo roubos) e outras degradaram-se irremediavelmente; houve sindicâncias e acusações desagradáveis, pediram-se demissões: em suma, o Museu andava na boca do povo pelos piores motivos. Embora nem tudo tenha sido, no entretanto, diáspora e desorientação: enriqueceu-se - e muito - o acervo do Museu (às vezes sem critério nem rigor nem gosto, pese embora a maior parte das peças terem sido doadas); em 1917 funda-se a Sociedade dos Amigos do Museu (Fundou-se nesta cidade uma associação com este titulo, que se destina a ajudar pecuniariamente a conservação dos objectos existentes neste Museu, a facilitar a acquisição de outros objectos e ao estudo da historia, arte e etnologia local)9 e pouco depois da morte do seu fundador (cujo funeral se realizou em Castelo Branco e parece ter sido a maior manifestação de pesar a que a cidade alguma vez assistiu), a Câmara Municipal decide dar-lhe o nome de Francisco Tavares de Proença Junior e expor um quadro com o retrato, a corpo inteiro, do benemérito fundador. Em 1926 publica-se o primeiro folheto do Museu, com notas sobre algumas peças (pintura) nele existentes. E, em 1928, deixa de ser municipal e passa a Regional.
Em 1908, F. Alves Pereira apelava: á Camara de Castello Branco faria eu agora um pedido: não esmoreça na realização d'este melhoramento, que ha de ser orgulho da cidade para os contemporaneos e para os vindouros.10 Hoje, passado um século, ouvimos - nítido - o eco da profecia.
1Cf. ADCB, Actas da Câmara Municipal, Mç.42, Liv.43, fl.131.
2Cf. ADCB, Actas da Câmara Municipal, Mç.42, Liv.43, fl.130v.º.
3Cf. PEREIRA, F. Alves, "Museu Municipal de Castello Branco" in O Archeologo Português, vol. XIII, n.os 1 a 6, pp. 117-118, p.117.
4Cf. Noticias da Beira, n.º290, de 24.IV.1910.
5O Archeologo Português, vol. XIV, n.os 1 a 12 (1910), pp.120-124, p.121.
6O Archeologo Português, vol. XIV, n.os 1 a 12 (1910), pp.120-124, p.123.
7Trata-se de um extracto de carta de Francisco Tavares de Almeida Proença (pai do fundador do Museu) ao Doutor José Leite de Vasconcellos. Não indicamos, de propósito, algumas fontes manuscritas (uma inéditas, outras não) que conhecemos.
8DIAS, José Lopes "Francisco Tavares de Proença J.or, Fundador do Museu de Castelo Branco" in Estudos de Castelo Branco, 40, 1972.
9A Madrugada, n.º10, de 17.VI.1917.
10Cf. PEREIRA, F. Alves, "Museu Municipal de Castello Branco" in O Archeologo Português, vol. XIII, n.os 1 a 6, pp. 117-118, p.118.
Autor: Leonel Azevedo
*Texto de Leonel Azevedo, no jornal Reconquista, sobre o MFTPJ, na íntegra (excepto a foto).
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