Comunicado*
A Administração Pública da Cultura e os Museus
Em 18 de Outubro de 2011, em Declaração intitulada “Os desafios da política de museus em tempos de crise” (disponível em www.icom-portugal.org / documentos / declarações e manifestos), tomou esta direção associativa posição pública sobre a situação do momento e as perspectivas então anunciadas para os museus em Portugal, especialmente os que se encontram sob tutela da Administração Pública Central, na área da Cultura. Este documento foi complementado com a realização de um debate público em 9 de Novembro de 2011. Em 23 de Junho de 2012, em face dos diplomas legais de enquadramento já publicados e antes que outros de carácter operacional os executassem, promovemos também, em conjunto com a Comissão Nacional Portuguesa do ICOMOS, novo debate intitulado “A nova orgânica do Património Cultural e dos Museus”, do qual resultou um comunicado subscrito por ambas as entidades (disponível em www.icom-portugal.org / documentos / outros). No entretanto, tínhamos já solicitado audiência a S. Exa. o Senhor Secretário de Estado da Cultura, que nos recebeu em 18 de Janeiro de 2012 e de que demos igualmente conhecimento (disponível no mesmo endereço electrónico), e participámos em debates e audições promovidos por terceiros, salientando-se o que teve lugar na Assembleia da República
em 15 de Maio de 2012, por iniciativa da respectiva Comissão de Educação, Ciência e Cultura (gravações integrais vídeo e áudio disponível no sítio Internet da Assembleia da República).
Do conjunto das tomadas de posição enunciadas salientam-se algumas preocupações maiores que então expressávamos, sendo elas:
1. Garantia do respeito pela Lei-Quadro dos Museus Portugueses (LQMP), aprovada por unanimidade na Assembleia da República, a qual constitui, no espírito e na letra, um enquadramento conceptual e institucional em que todos nos revemos não apenas enquanto profissionais de museus, mas também e sobretudo enquanto cidadãos;
2. Em cumprimento da LQMP:
a. Garantia da manutenção e reforço de organismo equivalente ao Conselho de Museus (até ao presente a Secção de Museus e Conservação do Conselho Nacional de Cultura), com as características de qualificação técnica e representatividade social e com as competências alargadas que o definem, mormente as que se referem ao estabelecimento de requisitos e à validação de processos de credenciação de museus;
b. Garantia da manutenção e reforço da Rede Portuguesa de Museus, enquanto estrutura cooperativa inter-pares, autónoma e não subordinada a qualquer tipo de vinculação hierárquica;
3. Garantia da manutenção da identidade própria dos museus tutelados pela Administração Pública da Cultura, seja ao nível dos quadros ou mapas de pessoal e capacidade de gestão de receitas próprias, seja ao nível das direções; a situação das direções mereceu especial ênfase, exigindo-se a manutenção do
princípio da direção de cada museu dever obrigatoriamente ser garantida em regime de exclusividade, ou seja, a tempo inteiro, por diretor curricularmente habilitado, detentor de lugar de chefia legalmente reconhecido, inserido em estrutura orgânica adequada.
Trata-se de princípios que reúnem amplo consenso entre os profissionais de museus.
Os próprios responsáveis pela reorganização dos Museus na Administração Pública da Cultura declararam subscrevê-los, afirmando a falta de fundamento das nossas advertências para o seu eventual desrespeito na nova configuração orgânica então em preparação. Em 12 de Junho de 2012, o Senhor Secretário de Estado da Cultura chegou mesmo a afirmar perante a Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da
República que estava de “má fé” quem ali tinha antes advertido para que se poderia vir a perder o princípio da direção a tempo inteiro dos museus.
Verificamos agora, passado cerca de um ano sobre a nossa tomada de posição inicial, publicados os diplomas que concretizam as orgânicas da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) e das Direções Regionais de Cultura (DRCs), e iniciado o processo de substituição de chefias, que não apenas se confirmam, como em certos casos se agravam, as nossas denúncias.
Assim:
i. Quanto ao Conselho de Museus / Secção Especializada de Museus e Conservação e Restauro do Conselho Nacional de Cultura (SEMCR-CNC), constata-se que simplesmente deixou de reunir, não tendo existido em todo este processo qualquer tipo de suporte consultivo democrático, como seria desejável;
ii. Quanto à Rede Portuguesa de Museus, verifica-se cumulativamente que:
a. Deixaram de ter lugar os plenários dos museus integrantes; os planos de atividades, se existem, deixaram de ser discutidos e em última análise avaliados pelos seus destinatários;
b. A estrutura central foi aglutinada com outras valências e despromovida para o nível de “estrutura flexível” (Divisão de Museus e Credenciação);
c. A competência da organização dos processos de credenciação passou a ser repartida entre DGPC e DRCs e a validação final dos mesmos passou a constituir competência do Diretor-Geral (em flagrante desrespeito da LQMP, que expressamente atribui esta capacidade a órgão consultivo idóneo, ou seja, ao Conselho de Museus, atual SEMCR-CNC);
iii. Quanto aos museus tutelados pela DGPC e pelas DRCs:
a. Deixaram de existir quadros ou mapas de pessoal, orçamentos e capacidades de arrecadação de receitas próprias, sendo também grandemente diminuída a autonomia de projecto;
b. Deixou de se aplicar estritamente o princípio de direção a tempo inteiro, museu a museu, através de lugar de chefia juridicamente válido e vinculante.
A questão da direção dos museus merece referência mais desenvolvida. Com efeito, não apenas se procedeu neste particular à junção da direção de museus geográfica ou tematicamente muito próximos – situação de que sempre discordaríamos, mas poderia ser atendível em determinadas circunstâncias – como se aplicou tal princípio a museus muito distantes entre si (na ordem da centena de quilómetros, no caso dos Museus de Castelo Branco e da Guarda) ou em situações que representam um inaceitável desrespeito pela história e especificidades próprias de instituições marcadamente diversas (como no caso do Museu Alberto Sampaio e do Paço Ducal de Guimarães; ou dos museus das Caldas da Rainha e do Museu da Nazaré). Estabeleceu-se acomodaticiamente o perfil de “coordenador” no caso dos museus que deixaram de possuir direção própria permanente, mas importa referir que tal figura, desprovida de reconhecimento jurídico formal, não corresponde nem no espírito nem na letra àquilo que tanto a doutrina internacional como a lei portuguesa obrigam em matéria de direção de museus. E como se tudo isto não bastasse, abandonou-se o princípio rigoroso da nomeação para a direção de museus de técnicos académica e/ou profissionalmente qualificados, como aconteceu relativamente ao Museu de Aveiro, originando uma situação que importa corrigir urgentemente. Esclarecemos ainda que estaremos atentos aos concursos para as futuras direções de museus, que importa serem abertos no mais breve prazo e nos quais se torna crucial assegurar a constituição de júris idóneos, com a participação de especialistas independentes, nos termos da lei. A assistência por parte de todos interessados das entrevistas de selecção, que revestem carácter público, deve também ser incentivada.
Como se compreende do que fica dito, entendemos que toda a situação em que se encontra a Administração Pública do Património Cultural e dos Museus reveste extrema gravidade. Admitimos que a prova da prática se encarregue, ela própria, de pôr em evidência a ineficácia tanto do centralismo orgânico adotado, como da desqualificação técnica, senão mesmo pela promoção da incompetência a que conduz. Torna-se manifesta a ausência de estratégia coerente ou sequer de preocupações reais de contenção de despesa. As DRCs, por exemplo, foram definidas na lei orgânica da Presidência do Conselho de Ministros (Decreto-Lei n.º 126-A/2011, de 29 de Dezembro) como delegações regionais abarcando a totalidade das áreas da Cultura (incluindo as chamadas “artes vivas”), sendo por isso dirigidas por chefias equiparadas as diretoresgerais. Afinal, vieram a constituir meras repartições, aliás sem autonomia, da DireçãoGeral do Património Cultural, mantendo em todo o caso os seus dirigentes, estranhamente, o estatuto equiparado a diretores-gerais.
Tudo isto leva a não darmos por adquirido o quadro actual. Continuaremos persistentemente a denunciá-lo e manter-nos-emos disponíveis para contribuir para a sua correção. É possível fazer mais e melhor, inclusive com maior poupança de recursos financeiros. É sobretudo necessário não desfazer o que levou muito tempo a construir e está na raiz na “revolução silenciosa” por que passaram os museus portugueses nas últimas décadas.
Apelamos, pois, aos profissionais de museus para que cada um na sua própria esfera de acção não desista de lutar pela dignificação dos museus e pelo cumprimento da sua função ao serviço do desenvolvimento da sociedade. E apelamos às diferentes tutelas, públicas e privadas, para que continuem a apoiar os museus, seguindo a via de crescente exigência e qualificação que vinha sendo trilhada em décadas anteriores.
*A Direção da Comissão Nacional Portuguesa do ICOM, em 27 de Setembro de 2012.
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